O RESPEITO PELOS HOMENS QUE COMANDEI
O texto que se segue não é a história da minha vida militar, embora pareça. Ele é, isso sim, a explicação para o imenso respeito que me merecem os homens que tive o privilégio único de comandar. Homens que, no princípio, pareciam ser uma cambada de básicos irrecuperáveis, que ninguém quis e que eram considerados a escória da companhia, mas que acabaram por se tornar nos mais valentes, sacrificados, esforçados e generosos combatentes do mundo: o 2º grupo de combate da Companhia de Caçadores 3535.
Os factos que aqui se relatam são absolutamente verdadeiros, sem qualquer ponta de fantasia. A mim mesmo, quando agora os recordo, eles me parecem incríveis, impossíveis de ter acontecido. Mas aconteceram assim mesmo, tal e qual. Juro por tudo quanto tenho de mais sagrado.
Aquilo que viria a resultar no Batalhão de Caçadores 3880 começou por ser um batalhão de instrução no Regimento de Infantaria 16, em Évora. Nessa altura, na minha qualidade de aspirante, fui encarregado de ministrar a especialidade de apontador de metralhadora, enquanto o aspirante Araújo (que viria a ser alferes na Companhia 3536) deu a de apontador de morteiro médio e os restantes aspirantes operacionais deram a especialidade de atirador de Infantaria.
O pessoal ao qual o Araújo e eu demos instrução tinha como destino as mais diversas companhias mobilizadas para o então Ultramar. Terminada a especialidade, portanto, os nossos instruendos foram para as unidades que superiormente lhes foram atribuídas e nós os dois, Araújo e eu, ficámos apenas com os nossos cabos milicianos e mais ninguém.
Deste modo, no início da constituição do nosso batalhão, eu não conhecia nenhum dos soldados e cabos que vieram a integrar a minha companhia. Os outros três aspirantes da companhia, pelo contrário, conheciam quase todos aqueles homens, porque lhes tinham dado a especialidade. Já lhes conheciam os méritos e os deméritos, as qualidades e os defeitos, mas eu não conhecia.
No momento inicial de proceder à distribuição dos homens pelos quatro grupos de combate da companhia, o comandante desta, o então tenente miliciano Lamas da Silva, mandou que o pessoal fizesse uma formatura em linha e ordenou:
— Agora os senhores aspirantes façam o favor de escolher os homens que querem.
Eu tentei objetar, procurando dizer ao Lamas que não estava em condições de fazer uma tal escolha, porque não conhecia aqueles homens, contrariamente ao que se passava com os outros aspirantes. O Lamas da Silva não me deixou falar, interrompendo-me continuamente e insistindo repetidamente comigo:
— Escolhe! Tens de escolher os homens que queres. Os outros aspirantes já estão a escolher. Tu também tens que escolher. Olha que assim ficas com os piores!...
Quanto mais eu procurava explicar-lhe que não estava nas mesmas condições que os outros aspirantes para poder escolher, mais ele me interrompia:
— Escolhe, já disse! Tens de escolher! Sou eu que te mando!
A dado momento, os outros aspirantes deram por finda a sua escolha, sem que eu tivesse escolhido quem quer que fosse e sem que o comandante da companhia me tivesse dado ouvidos. Disse-me
este:
— Estás a ver o resultado? Os outros aspirantes já escolheram e tu acabaste por ficar com os piores. Quer gostes, quer não gostes, vai ser com esses que vais ficar. Foste tu que assim quiseste. E não esperes nenhum tratamento de favor da minha parte.
Já só me limitei a responder:
— Pode ter a certeza absoluta de que nunca lhe irei pedir favor nenhum.
Olhei para os soldados e cabos que me estavam destinados e senti-me desfalecer.
Pensei: «Sou um homem morto! É com este pessoal que eu vou para a guerra? Estou morto. Eu com homens neste estado não vou durar nem uma semana em Angola! Já me estou a imaginar a regressar dentro de um caixão...»
Com efeito, o aspeto dos meus novos subordinados metropolitanos era arrepiante. Não admirava que aqueles homens tivessem sido rejeitados pelos outros aspirantes. Alguns deles pareciam atrasados mentais; outros pareciam sifilíticos ou coisa parecida. Todos eles pareciam completamente impróprios para servirem como combatentes numa guerra. Nem um só se aproveitava. Os meus três excelentes cabos milicianos (Silva, Macedo e Santos) pareciam tão aterrados como eu.
«Isto só a mim! Que mal é que eu fiz para merecer isto?», pensava eu e pensavam, certamente, os cabos milicianos. «O que é que vai ser de nós, na guerra, com homens assim? Isto não pode ser verdade. Eu devo estar a sonhar e isto é um pesadelo». Mas não era pesadelo nenhum. Era a realidade, que eu tinha que enfrentar custasse o que custasse.
Completado o batalhão no que à sua parte europeia dizia respeito, fomos enviados para o Campo Militar de Santa Margarida, onde iríamos aguardar o dia da nossa partida para Angola, o que deveria acontecer dentro de perto de dois meses. Achei que, durante esse tempo, talvez ainda fosse possível fazer algum esforço para melhorar a preparação dos soldados e cabos que me tinham calhado em sorte, mas as coisas não se passaram tal como eu esperava.
Naquele tempo, os batalhões e companhias que estavam aquartelados em Santa Margarida, à espera de embarque para as colónias, eram habitualmente ocupados com uma intensa atividade de preparação para a guerrilha, que era a chamada IAO (Instrução de Aperfeiçoamento Operacional). Mas o nosso batalhão estava incompleto e, por isso, não podia receber a IAO em Santa Margarida; só depois, já em Angola, é que poderia recebê-la. Assim, enquanto permaneceu em Santa Margarida, o nosso batalhão não teve qualquer atividade superiormente programada, nem qualquer orçamento atribuído para esse efeito, nem coisa nenhuma. Apenas lhe foram reservados os alojamentos que ocupou até ao dia do embarque e mais nada.
Nestas condições, ao pessoal do batalhão foi sendo dada uma instruçãozinha de meia-tigela, que tinha como única finalidade mantê-lo ocupado com alguma atividade até ao dia do embarque. Fazia-se alguma ginástica, dava-se uma ou outra lição de tática, faziam-se muitas e longas pausas e gastavam-se muitas e longas horas a fazer ordem unida. Ordem unida, imagine-se! Pôr soldados que vão para uma guerra no mato africano a marchar para a frente e para trás, um-dois-esquerdo-direito, durante horas a fio, não lembrava ao diabo! Quem nos visse, diria que íamos para Angola fazer desfiles em parada diante do inimigo! Eu estava exasperado. O tempo urgia cada vez mais e nós estávamos a desperdiçá-lo com aquelas mariquices!
Resolvi então atuar por minha conta e risco, mandar o batalhão à fava e ser eu sozinho a dar aos meus subordinados a instrução de que eles necessitavam com tanta urgência. Se eu viesse a ser punido por não seguir o programa determinado pelo comando do batalhão, pouco me importava. Eu ia para a guerra, pior não me poderia acontecer.
Foi por acaso que descobri uma maneira de levar os meus homens para fora do Campo Militar, para a charneca vizinha, onde lhes poderia ensinar tática militar sem sofrer interferências dos meus superiores hierárquicos. Descobri também que poderia usar a carreira de tiro do Campo, onde o meu pessoal poderia gastar algumas das muitas munições excedentárias que, como vim também a descobrir, havia na arrecadação de material de guerra.
Afastados assim os possíveis obstáculos à minha decisão de ministrar uma espécie de IAO privativa aos meus subordinados, passei a pôr diariamente em prática um programa de atividades, que incluía muita preparação física, muito tiro e, sobretudo, muita tática de guerrilha. Devidamente apoiado pelos meus excelentes cabos milicianos, procurei ensinar-lhes tudo quanto eu próprio tinha aprendido em Mafra.
Aquelas semanas em Santa Margarida foram muito duras para mim. Muitas e muitas vezes me senti profundamente desanimado e com vontade de desistir, pois dificilmente eu conseguia vislumbrar algum progresso na preparação militar dos meus homens. Quando vim gozar a semana de licença que era costume dar, pouco tempo antes do embarque, aos militares que estavam mobilizados para a guerra (as "normas" ou qualquer coisa assim parecida; já não me lembro do nome da licença), sentia-me profundamente deprimido, quase à beira do desespero. Todo o esforço dispendido naquela corrida contra o tempo me parecia ter sido inútil.
Mas quando regressei a Santa Margarida no fim da licença e voltei a encontrar os meus subordinados, eu nem queria acreditar no que os meus olhos viam. Foi só após aquela semana de ausência que eu me apercebi, com grande espanto meu, que eles tinham mesmo evoluído, e até de forma verdadeiramente espetacular. Pareceram-me mais aprumados do que os outros, mais rijos do que os outros e mais confiantes do que os outros. Os "sifilíticos" e os "atrasados mentais" de outrora já não existiam mais. Alguns estavam mesmo irreconhecíveis. «Tenho homens!», pensei, espantado com tão grande transformação. «Como é possível que eu não me tenha apercebido deste milagre antes? Tenho homens!»
Um dia, ainda em Santa Margarida, os aspirantes das três companhias operacionais do batalhão, incluindo eu próprio, tomaram em conjunto uma resolução que iria pautar a sua conduta ao longo de toda a sua estadia em Angola. Foi uma resolução tomada espontaneamente e não de forma organizada, mas que valeu como um juramento, em que cada um de nós ficou como testemunha e como futuro juiz dos restantes. Uns perante os outros, tomámos então a seguinte resolução:
«Nós não sabemos o que nos espera na guerra. Não sabemos que perigos é que iremos enfrentrar, nem que horrores é que iremos testemunhar. Não sabemos sequer se estaremos no lado certo ou no lado errado da guerra. Só em Angola é que viremos a saber. Mas independentemente de estarmos ou não no lado certo, independentemente de tudo o que nos vier a acontecer, iremos procurar agir sempre dentro dos limites éticos que a nossa consciência nos impuser. Talvez esta seja uma tarefa impossível de cumprir no meio de uma guerra, não sabemos, mas pelo menos iremos fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para agir de acordo com a nossa consciência, custe o que custar».
Quando embarquei no avião da Força Aérea com destino a Angola, juntamente com a parte europeia da minha companhia, eu sentia-me fortalecido com a resolução tomada, que estava disposto a cumprir. O mesmo se passava com os outros alferes.
À chegada ao quartel do Grafanil, em Luanda, fomos informados de que a companhia que íamos render tinha a sua partida marcada para muito brevemente e, por isso, a nossa Instrução de Aperfeiçoamento Operacional teria que durar apenas uma semana. «Isto começa mal», pensei.
No dia seguinte, de manhã, chegaram os camaradas angolanos que iriam fazer parte da nossa companhia, vindos diretamente da cidade de Sá da Bandeira, que agora se chama Lubango.
«Estou salvo», pensei, assim que vi todos aqueles negros e mestiços de ar desempoeirado, porte digno e olhar inteligente. «Estou salvo. Quaisquer que sejam os que ficarem comigo, serão bons com certeza».
Como já tinha acontecido na Metrópole, o capitão Lamas da Silva mandou os angolanos formar em linha e ordenou:
— Os alferes escolham os homens que querem.
— Eu não escolho — repliquei de modo displicente.
— Estás doido?! — gritou o capitão. — Tu já tens os piores dos brancos e agora queres ficar com os piores dos africanos? És suicida ou quê? Escolhe! É uma ordem!
— Não escolho — teimei, pensando: «Só agora é que ele se preocupa? Agora é tarde demais. Assim como consegui resolver o problema de uns, também hei de resolver o dos outros, que nem problema parece ser. Agora é que não escolho mesmo».
Acrescentei:
— Isto não é maneira de distribuir pessoas. Não se devem escolher homens como quem escolhe cabeças de gado. Eles são seres humanos, não são animais.
Enquanto o capitão e eu discutíamos, os outros alferes iam fazendo as suas escolhas. No fim, fiquei com os angolanos que restaram. «Nada mau», pensei ao vê-los. «Não me parecem piores do que os outros».
Cada um dos alferes conduziu então os seus angolanos à caserna, onde já estavam os seus camaradas portugueses, para que se instalassem junto destes. Finalmente, os pelotões estavam completos. Ao verem chegar os seus novos camaradas angolanos, os portugueses ficaram encolhidos, comentando uns com os outros:
— Ih, que pretos que eles são! É cada tição!
— Oh, pá, os gajos são todos iguais, são todos pretos… Como é que vamos conseguir distingui-los uns dos outros?
Os angolanos, por seu lado, com a espontaneidade e jovialidade que lhes eram características, dirigiram-se resolutamente para os seus camaradas portugueses, de sorriso rasgado e mão estendida, dizendo-lhes:
— Parece que vamos ter que nos aturar uns aos outros durante dois anos, não é verdade? Então o melhor é começarmos já a conhecer-nos. Eu sou fulano de tal, sou de tal sítio e na vida civil fazia isto assim e assim. E tu? Como te chamas? De que terra és? O que é que fazias na vida civil?
Com este seu gesto, os angolanos quebraram imediatamente toda a desconfiança e toda a timidez que os portugueses manifestavam e o relacionamento estabeleceu-se com tanta naturalidade e tanta intensidade, que quem os visse diria que eram velhos amigos que já não se viam há muito tempo e que estavam a pôr as conversas em dia. Eu, que a tudo assisti, fiquei encantado com a facilidade com que se iniciava aquela amizade entre brancos, negros e mestiços, amizade esta que iria ser para a vida e para a morte.
Ao fim do dia, quando ficámos livres das nossas obrigações e pudemos sair do quartel, todos os angolanos da companhia saíram logo disparados a correr pela porta fora. Os que eram de Luanda foram os primeiros a sair, ansiosos por voltar a casa e reencontrar os seus familiares. Desde que tinham sido incorporados no serviço militar obrigatório e enviados para o Regimento de Infantaria 22, em Sá da Bandeira, a fim de fazerem a recruta e a especialidade, nunca mais puderam estar junto dos seus. Tendo estado colocados a mil quilómetros de distância, é evidente que não tinham podido vir passar os fins de semana a casa...
Os restantes angolanos também saíram cheios de pressa. Meteram-se em táxis e foram diretamente à Ilha de Luanda, para verem o mar antes que a noite caísse. A maior parte deles nunca tinha visto o mar.
O dia seguinte era para ser o dia da nossa partida para o Úcua, mesmo ao pé da zona de guerra, onde iríamos receber a Instrução de Aperfeiçoamento Operacional. Era para ser, mas não foi. Partimos, sim, mas para a própria guerra...
— Vamos render imediatamente a companhia que está à nossa espera — comunicou-nos o capitão. — Não vamos receber IAO nenhuma, porque não há tempo para isso. Quem estiver preparado, está; quem não estiver, estivesse.
Avançámos para Zemba, com o coração aos saltos. «Olha se eu não tivesse dado aquela instrução toda em Santa Margarida...», pensei. «Agora estaria em maus lençóis».
Ao longo da comissão militar, todos os meus subordinados — furriéis, cabos e soldados, portugueses e angolanos sem distinção — comportaram-se de uma forma que ultrapassou tudo o que de melhor eu poderia esperar. Tudo, mesmo tudo. Eles foram verdadeiramente insuperáveis no esforço, na generosidade e na valentia.
Eles foram mais longe do que quaisquer outros militares tinham ido desde o início da guerra. Eles entraram onde as tropas ditas especiais não tinham tido coragem de entrar. Eles passaram a menos de cem metros de sentinelas inimigas sem terem sido descobertos. Eles avançaram, sem vacilar, por um trilho minado e armadilhado, sabendo antecipadamente que o trilho estava minado e depois de, numa operação anterior, já um seu camarada ter ficado sem uma perna por ter pisado uma mina. Eles conquistaram o Catoca sozinhos, sem qualquer apoio e comandados pelo furriel Macedo (porque eu me encontrava ausente de férias), desalojando a tiro e de peito descoberto os guerrilheiros entricheirados na base.
Por outro lado, nem uma só vez eles se comportaram como cães de guerra espalhando a morte à sua volta, como parecia estar expresso no repugnante lema da companhia: «A cada um a sua própria morte». Aliás, de maneira nenhuma os outros três alferes e eu próprio estávamos dispostos a permitir um tão odioso comportamento. Felizmente nunca foi precisa qualquer intervenção nossa a este respeito. O nosso pessoal nunca se deixou desumanizar, apesar de algumas situações extremas que se viveram. Nunca, em tempo algum, os nossos homens deixaram de ser sensíveis à morte e ao sofrimento humano.
Sinto um orgulho enorme nos subordinados que me coube comandar. Eles foram, verdadeiramente, os melhores. Isto mesmo foi publicamente reconhecido pelos outros camaradas que com eles comeram o pão que o diabo amassou.
— Só ao lado deles é que nos sentimos seguros — disseram, textualmente, os camaradas do 1º grupo de combate a seu respeito. — São os únicos em quem temos confiança.
Isto não aconteceu por acaso e a explicação é simples. Quando, no início, foram rejeitados pelos outros alferes, os meus cabos e soldados sentiram-se feridos na sua dignidade pessoal. Este facto levou-os a procurar provar aos outros e sobretudo a si próprios que tinham tanto valor como eles. Superaram-se e conquistaram com sangue, suor e lágrimas o respeito que lhes tinha sido negado. Posso, por isso, afirmar categoricamente que fui um privilegiado por ter tido a meu lado companheiros dotados de uma tal fibra.
Fui ainda mais privilegiado porque entre eles havia angolanos, que foram das pessoas mais extraordinárias que conheci. Não há dinheiro no mundo que pague toda a sua sabedoria, toda a sua generosidade e toda a sua sensibilidade. Depois de os ter conhecido, nunca mais fui o mesmo. Tenho os seus nomes escritos em letras de ouro no meu coração: Domingos Amado Neto, Silva Alfredo dos Santos, Domingos Cangúia, Diogo Manuel, Ramiro Elias da Silva, Domingos Jonas, Mateus Tchingúri, Jonas Vitorino, Lucas Quinta, Henrique Luneva, Raimundo Nunulo, Domingos Dala, Fortunato Francisco João Diogo e Simão João Leitão Cavaleiro. Nunca os esquecerei.
Só lamento não ter conseguido ser um alferes à altura do que todos eles — angolanos e portugueses — mereciam.
Os nossos camaradas angolanos eram filhos do povo. Do admirável e sofrido povo de Angola. Quer isto dizer que, para a esmagadora maioria deles, foi só quando passaram a fazer parte da nossa companhia que eles puderam, pela primeira vez nas suas vidas, relacionar-se com brancos de igual para igual. Olhos nos olhos, ombro com ombro, de homem para homem. E eles foram insuperáveis no companheirismo e na dignidade com que se relacionaram connosco, os europeus da companhia.
Encontrando-se na mesma situação que nós, os nossos camaradas angolanos não se limitaram a partilhar as suas vidas connosco no seio da companhia; eles fizeram parte integrante de nós mesmos, tanto quanto isto foi possível. Eles travaram os mesmos combates que nós. Eles caíram nas mesmas emboscadas que nós. Eles enfrentaram as mesmas minas que nós. Eles contornaram as mesmas "bocas-de-lobo" que nós. Eles suaram os mesmos cansaços que nós. Eles enjoaram as mesmas rações de combate que nós. Eles dormiram debaixo da mesma chuva que nós. Eles tremeram os mesmos medos que nós. Eles riram as mesmas alegrias que nós. Eles choraram as mesmas saudades que nós. Eles acalentaram as mesmas esperanças que nós. Eles foram nós. Todos fomos nós.
Durante o seu serviço militar, os nossos camaradas angolanos faziam uma vida muito frugal, porque queriam amealhar algum do dinheiro do pré que recebiam, a fim de que, quando acabassem a tropa e regressassem à condição civil, pudessem pagar o alembamento (dote que, segundo a tradição bantu, o noivo tem que pagar à família da noiva) e assim casar-se e constituir família. Esperavam igualmente poder vir a arranjar um emprego minimamente estável e razoavelmente remunerado, tanto quanto era possível a africanos vivendo na Angola colonial.
Subitamente, quase no fim do nosso serviço militar, deu-se a Revolução do 25 de Abril. A Revolução abriu novos horizontes e gerou novas esperanças no coração de todos, angolanos e portugueses, eu incluído. A partir dessa data, os nossos camaradas angolanos passaram a esperar um futuro que antes não tinham podido esperar, porque lhes estivera vedado.
Eles esperaram poder aceder a empregos que até então tinham sido tacitamente reservados a brancos, como os de motoristas de táxi ou empregados bancários. Esperaram poder ganhar tanto e ter as mesmas possibilidades de promoção e de aumento de salário que um branco que fizesse o mesmo trabalho que eles. Esperaram poder entrar nos estabelecimentos comerciais que quisessem, sem receio de serem atendidos com maus modos e enxotados e sem terem que pagar mais do que pagaria um branco pelos mesmos artigos. Esperaram ter condições que lhes permitissem viver numa casa que merecesse o nome de casa, e não numa construção precária de adobe ou de blocos de cimento ou numa cubata. Esperaram que os seus filhos viessem a ter os estudos que eles próprios não puderam ter, apesar da sua enorme vontade de aprender. Enfim, eles viram abrir-se diante de si a perspetiva de uma vida muito mais livre, próspera e feliz do que tinham tido até então, uma vida sem humilhações e sem pobreza.
Quando no fim nos separámos, as nossas vidas — as dos portugueses por um lado e as dos angolanos por outro — tomaram caminhos terrivelmente distintos. Enquanto nós, os portugueses, pudemos recomeçar as nossas vidas (melhor ou pior, consoante a condição psíquica e física em que ficámos) num Portugal em paz, os nossos camaradas angolanos mergulharam numa guerra incomparavelmente mais terrível do que a guerra de guerrilhas que eles e nós tínhamos enfrentado juntos: a guerra civil que estalou em Angola em 1975 e que só terminou definitivamente em 2002.
Muitos dos nossos camaradas angolanos eram oriundos de Nova Lisboa (atual Huambo), de Silva Porto (atual Kuito), de Malanje e de outras terras onde a guerra civil atingiu o seu paroxismo. Estes nossos camaradas apanharam em cheio com um dilúvio de fogo e de metralha que durou anos e anos a fio. Mais tarde ou mais cedo devem ter sido obrigados a abandonar tudo o que tinham e a procurar refúgio no mato ou tomar o caminho de Luanda, Benguela, Lubango ou outro sítio onde se pudessem sentir mais seguros. Devem ter enfrentado a fome, as doenças, as minas e sabe-se lá que mais. Quantos deles terão conseguido sobreviver a tudo isto? Tremo só de pensar. Naquela guerra houve tantos mortos! Tantos corpos despedaçados! Tantas famílias destroçadas! Todos os sonhos e todas as esperanças que a seguir ao 25 de Abril esses nossos camaradas tinham alimentado foram varridos por uma arrasadora torrente de guerra e de morte.
De maneira nenhuma eu desejo diminuir o valor dos meus camaradas portugueses, que em tudo era igual ao dos angolanos, sem qualquer sombra de dúvida. Não é disso que se trata. O que apenas pretendo neste momento fazer é prestar uma homenagem muito sincera, ainda que canhestra, a pessoas que tive o enorme privilégio de conhecer, cheias de humanidade, de sensibilidade e de coragem, que me deram extraordinárias lições de vida e que eram as últimas pessoas no mundo a merecer a sorte que o destino lhes tinha reservado: os nossos antigos camaradas de armas angolanos. Faço-o com um nó na garganta.
À NOITE, EM ZEMBA
À noite, em Zemba, eu era o último a deitar-me. Dominado por uma avalanche de pensamentos e de emoções, eu percorria incessantemente a parada do quartel, para trás e para a frente, fumando cigarros atrás de cigarros e tendo como única companhia as estrelas do céu e o ruído monótono do gerador. Pensava, por exemplo, em como tinha sido estúpido em me deixar cair na armadilha em que estava, de ter que fazer uma guerra que não desejava, contra um inimigo que não odiava, numa terra que não conhecia, para defender uma sociedade que se me tinha revelado incomparavelmente mais cruel e desumana do que tinha imaginado antes de partir para Angola.
Eu pensava, também e sobretudo, nos homens que comandava e nos seus pais e mães, nas suas esposas ou namoradas, nos seus irmãos e irmãs e, duma maneira geral, em todos os seus familiares e amigos, que aguardavam ansiosamente que eles voltassem daquela guerra sãos e salvos. Imaginava as suas mães, por exemplo, a rezar e a fazer promessas a Nossa Senhora de Fátima, no caso das portuguesas, ou a Nossa Senhora da Muxima, no caso das angolanas, para que eles regressassem vivo e inteiros.
É certo que numa guerra há sempre mortos e feridos; eu sentia que isso era inevitável. Mas o que me angustiava mais era a possibilidade de algum dos meus heroicos subordinados perder a vida ou ficar mutilado por minha causa, por eu ter dado uma ordem errada ou por ter tomado uma decisão demasiado tardiamente, no decurso de uma operação. Nunca me perdoaria se tal viesse a acontecer. Os meus homens confiavam em mim e eu não podia trair esta confiança, acontecesse o que acontecesse. Apesar de só ter pouco mais de vinte anos de idade ou por isso mesmo, eu sentia sobre os meus ombros o peso esmagador das vidas humanas que me tinham sido confiadas. Era esta medonha responsabilidade que me tirava o sono.
O comandante e o segundo comandante do meu batalhão eram indivíduos completamente insensíveis à morte e ao sofrimento alheios, desde que isso lhes permitisse subir na sua carreirazinha militar. Eram incapazes de correr os riscos inerentes à sua condição de profissionais da guerra, mas queriam por força ganhar medalhas e promoções à custa do sacrifício dos outros. Como eu invejava esta sua insensibilidade! Enquanto eu passava as noites a deambular pela parada, terrivelmente angustiado, eles dormiam tranquilamente o sono dos irresponsáveis. Que inveja!
NATAL DE 1972
Estávamos em finais de novembro ou princípios de dezembro de 1972, quando fomos encarregados de realizar uma operação que tinha por finalidade a destruição de lavras que existiam na área do Catoca, na zona de ação da companhia do Mucondo, e que pertenciam à população civil afeta à UPA/FNLA. Para essa operação, foram destacados o primeiro e o segundo grupos de combate da C. Caç. 3535, comandados respetivamente pelo Arrifana e por mim, e ainda o segundo grupo, se não me engano, da C. Caç. 3537, que era comandado pelo Osman. O comandante da operação iria ser o Arrifana.
A execução da destruição das lavras iria estar a cargo de dois grupos de bailundos, que se encontravam às ordens do Exército em Santa Eulália e no Mucondo. A tropa de Zemba levaria consigo os bailundos de Santa Eulália e a tropa do Mucondo levaria os do próprio Mucondo. A nossa função, como militares, iria ser enquadrar e garantir a segurança aos bailundos, enquanto estes destruiriam as culturas agrícolas, munidos de catanas.
Habitualmente, antes da partida para uma qualquer operação, os oficiais que nela participassem costumavam reunir-se para acertar os pormenores sobre a sua execução. Neste caso, os três alferes destacados, Arrifana, Osman e eu, também fizemos uma reunião no Mucondo antes de partirmos para a operação. Logo a abrir, disse o Arrifana:
— Nós não vamos destruir lavras nenhumas. É um crime e eu não quero ser criminoso. Há crianças, há doentes, há mulheres, há muitas pessoas inocentes que não têm culpa de viver numa região em guerra. Nós não temos o direito de causar sofrimento a essas pessoas, obrigando-as a passar fome. Isto é coisa que repugna à minha consciência. Já basta o que sofrem com a própria guerra.
O Osman e eu manifestámos imediatamente o nosso total acordo. Uma coisa era combater homens armados, outra coisa muito diferente era fazer mal de propósito a civis indefesos. Discutimos então o que é que iríamos fazer, em vez de destruir as lavras.
Decidimos que primeiro iríamos às próprias lavras, para que ninguém pudesse dizer que não tínhamos ido ao objetivo. Uma vez lá chegados, separar-nos-íamos e procederíamos a patrulhamentos na zona, procurando detetar sinais sobre eventuais movimentações de guerrilheiros e outros indícios, uma vez que há vários meses que nenhuma força militar tinha andado por aquelas bandas. Iríamos, portanto, atualizar a informação que a tropa tinha sobre a situação na zona do Catoca.
A nossa progressão em direção às lavras decorreu sem qualquer problema. Porém, no preciso momento em que estávamos a chegar, ocorreu um incidente extremamente lamentável, que muito nos perturbou. Numa curva do trilho por onde seguíamos apareceu de repente uma mulher. Vendo que não conseguia escapar-nos, a mulher matou-se, espetando no peito a catana que trazia na mão. Os soldados que estavam mais próximos dela balbuciaram, estupefactos:
— Mas nós não queríamos fazer-lhe mal! Porque é que ela se matou? Porquê? Nós não íamos fazer-lhe mal! Juro que não íamos! Porque é que ela se matou?!
Passados os primeiros momentos de choque, o pessoal passou a manifestar a sua admiração por aquela mulher, exclamando:
— Que grande mulher! Preferiu morrer a deixar-se capturar. É uma heroína! Que grande mulher! Que grande mulher!
Como não se podia fazer nada para remediar a situação, pois a mulher já estava morta, procedeu-se ao seu enterramento e colocou-se uma cruz improvisada à cabeceira da sua sepultura. Os nossos camaradas que eram crentes ainda rezaram uma oração pela sua alma, antes de abandonarmos o local.
Vínhamos todos silenciosos, fortemente impressionados com o sucedido, quando um soldado falou muito alto, dizendo:
— Se a gaja não se matasse, quem a matava era eu!
Uma onda de indignação varreu toda a coluna. Uma chuva de insultos caiu sobre o soldado que tinha falado:
— Ó seu grande filho da puta! Tu eras capaz de matar uma mulher, seu cobardolas de merda?! Grandessíssimo cabrão! Cobarde!
Estes e outros "mimos" foram dirigidos ao soldado, que não voltou a falar. O resto da operação decorreu sem mais incidentes.
Quando, depois de terminada a operação, os dois grupos de combate da 3535 regressaram a Zemba numa coluna de viaturas, tiveram que parar em Santa Eulália para largar os bailundos que tinham ido com eles. Como sempre se fazia quando se parava em Santa Eulália, o comandante da coluna, que neste caso era o Arrifana, foi apresentar-se ao brigadeiro. Este perguntou-lhe quantos hectares de lavras é que tínhamos destruído na operação. O Arrifana respondeu que nenhum. O brigadeiro ficou raivoso, gritando:
— Vocês não destruiram as lavras?! Eu mandei-os lá de propósito para destruir as lavras e vocês não as destruiram? Isto é imperdoável! É uma desobediência! Se há coisa que eu não admito é que não cumpram as minhas ordens! De castigo, vocês vão passar a noite de Natal lá mesmo, naquelas lavras, a comer ração de combate e a dormir ao relento, para aprenderem a cumprir as ordens que lhes dão!
Na madrugada do dia 24 de dezembro, quando subi para uma viatura da coluna que nos levaria ao Mucondo, a fim de nessa noite cumprirmos o castigo ordenado pelo brigadeiro, senti um nó na garganta ao ver os meus homens tristes mas de cabeça levantada, sem um queixume nem uma recriminação. Tive pena e orgulho deles ao mesmo tempo.
Quando chegámos a Santa Eulália, o Arrifana mandou parar a coluna, a fim de ir falar com o brigadeiro e tentar convencê-lo a anular o castigo. Enquanto ele se dirigiu para o gabinete do brigadeiro, eu encaminhei-me para a messe de oficiais da companhia operacional de lá, a Companhia de Artilharia 3415, que era uma companhia sacrificadíssima e pela qual eu tinha muito respeito.
Na messe de oficiais da companhia encontrei o capitão e os alferes muito atarefados a fazer as decorações de Natal. Assim que me viram, exclamaram:
— Que é que estás aqui a fazer?! Hoje é véspera de Natal, não era suposto vocês virem cá. Deviam ficar lá em Zemba a preparar os festejos para logo à noite. Que é que se passa?
Expliquei-lhes que íamos passar o Natal na mata, de castigo por não termos destruído as lavras, por ordem do brigadeiro. Exclamaram:
— Ó pá! Façam como nós! Nós também não destruimos as lavras, mas o brigadeiro pensa que sim...
E passaram a explicar-me como deveríamos fazer:
— Como sabes, a base da alimentação da população desta região é a mandioca. O que se come da mandioca está debaixo da terra, são as raízes. Vocês podem fazer um desbaste na rama das mandioqueiras sem prejudicarem as raízes. Se calhar até lhes faz bem, pois será uma espécie de poda. Não tenham problemas de consciência. Desbastem a rama e espalhem-na toda, para que o brigadeiro possa ver bem, se passar lá por cima de avião. Pode parecer que a destruição é muito grande, mas a verdade é que as raízes continuam intactas debaixo da terra, que é o que interessa.
Continuaram a explicar-me, acrescentando:
— Isto é o que vocês devem fazer à mandioca e a outros tubérculos, como a batata doce. Agora quanto ao milho... Não toquem no milho!!! Se vocês cortarem o milho, ele morre, como é evidente. Vocês só podem cortar o milho quando virem que ele já está maduro. Então sim, cortem à vontade, sem problemas de consciência, pois ele acabará mesmo por ser cortado, mais dia menos dia.
Concluíram:
— É assim que nós temos feito e temo-nos dado muito bem com isso. O brigadeiro fica muito contente, porque pensa que as lavras foram destruídas, e nós não temos problemas de consciência, pois não provocamos fome em ninguém. O brigadeiro é militar de carreira, não percebe nada de agricultura...
Enquanto isto acontecia, no gabinete do brigadeiro, o Arrifana tentava convencê-lo a anular o castigo, dizendo-lhe que o castigo era injusto para os soldados. Argumentou:
— O comandante da operação fui eu. Os soldados limitaram-se a cumprir as minhas ordens. Eles não têm culpa nenhuma e será uma injustiça se forem castigados. Se o meu brigadeiro quiser castigar alguém, castigue-me a mim, porque eu é que sou o responsável.
Ao fim de muita insistência, o brigadeiro acabou por anular o castigo, mas exigiu ao Arrifana que lhe prometesse que, numa operação posterior, aquelas lavras iriam mesmo ser destruídas. O Arrifana prometeu e nós pudemos regressar a Zemba, para passar o Natal com o resto da malta, como de facto aconteceu.
As lavras nunca foram destruídas. Pouco tempo depois, o brigadeiro foi substituido por outro e o novo brigadeiro não estava preocupado com lavras. Mas se tivéssemos que voltar à zona do Catoca para destruir as lavras, já sabíamos como haveríamos de fazer…
O GUERRILHEIRO DIDI
O alferes sentou-se numa cadeira e, com um ar extraordinariamente abatido, como nunca lhe tinha sido visto antes nem nunca voltou a ser-lhe visto depois, confidenciou a dois ou três outros alferes, entre os quais eu próprio:
«Na última operação, o meu grupo de combate capturou um guerrilheiro. Vivo e armado.»
Por momentos pensei que ele iria dizer com ar triunfal:
«Vejam como nós somos bons! Até os agarramos à mão, armados e tudo!»
Mas não. O abatimento em que ele se encontrava contrastava demasiado com qualquer espécie de triunfalismo. Em vez disso, o alferes contou:
«O guerrilheiro foi trazido à minha presença e fiz-lhe um primeiro interrogatório. Comecei por lhe pedir para se identificar. Disse-me que era o guerrilheiro Didi, da 1ª Região Político-Militar do MPLA, de seu nome próprio fulano de tal. Perguntei-lhe quem era o seu comandante. Respondeume que era o Jacob Caetano "Monstro Imortal". Fiz-lhe mais algumas perguntas sobre o MPLA e sobre a guerra em geral. Respondeu-me só a algumas e não revelou nada que nós já não soubéssemos. A outras perguntas recusou-se a responder e eu não insisti. A minha intenção, naquele momento, não era extrair-lhe informações, mas sim saber a razão pela qual ele nos combatia. Foi isso o que lhe perguntei a seguir.
«Com ar sereno e olhar firme, o Didi respondeu-me que combatia a opressão colonial, o racismo, os maus tratos e as humilhações que o povo angolano sofre todos os dias na sua própria terra.
«Senti-me incomodado. Aquele guerrilheiro combatia por uma causa justa. Tinha ideais e lutava por eles. E nós? Por que causa é que nós lutamos? Que interesses é que nós defendemos? Que ideais é que nós temos? O único ideal que nos move é sairmos daqui vivos e inteiros...
«Como eu disse, o Didi falou-me com ar calmo e de cabeça levantada. Tanto, que cheguei a duvidar que ele estivesse consciente da verdadeira situação em que se encontrava. Por isso lhe perguntei:
«— Você imagina qual é o destino que lhe poderá estar reservado?
«— Acho que sim — respondeu-me ele. — Com certeza vou ser torturado e vou acabar por ser morto.
«Fiquei impressionado com a resposta e não pude deixar de lhe notar:
«— E você diz isso com essa serenidade toda... Não sente medo?
«O Didi respondeu-me:
«— Claro que sinto medo. Estou morto de medo. Mas vou fazer o quê? Chorar? O que é que eu ganho com isso?
«Perguntei-lhe ainda:
«— Quer dizer, então, que está pronto para morrer?
«E o Didi respondeu, sem vacilar, sem uma única tremura na voz:
«— Estou pronto para morrer. Morro pela liberdade do meu povo.
«Oh, pá! Vocês não imaginam como é que eu me senti! O que eu deveria ter feito, naquele momento, era desertar, fugir com o Didi, passar-me para o outro lado. É verdade que eu não sou negro, mas também não sou branco, nem sequer sou da Metrópole. Como vocês sabem, sou de Moçambique. No fundo, eu também sou um colonizado. Essa é que é a verdade: eu também sou um colonizado. E o que faço eu aqui, afinal, nesta terra que não é a minha, a fazer uma guerra que não me diz respeito? Porque é que me mobilizaram para aqui, para Angola, e não para a minha terra que é Moçambique? Eu não tenho nada que estar aqui, nada disto é comigo. O que eu deveria ter feito naquele momento era desertar e passar-me, não para o MPLA porque não sou de Angola, mas para a Frelimo.
«Mas não desertei. Porque tenho uma mulher à minha espera, por quem estou apaixonado e com quem me casei antes de embarcar para cá. Se eu desertasse, durante quanto tempo ainda é que eu continuaria privado da companhia da mulher que eu amo?
«E os meus pais, que deixei lá em Lourenço Marques, como é que ficariam? Há vários anos que não os vejo. Nunca mais os vi desde que fui para a Metrópole estudar. Se eu desertasse, ficaria ainda mais tempo sem os poder ver, ficaria os anos que esta guerra ainda viesse a durar, sabe-se lá quantos. Imagino as saudades que a minha querida mãe e o meu querido pai devem sentir por mim, tal como eu sinto por eles. Os meus pais devem estar profundamente angustiados, sabendo que eu estou aqui na guerra. Devem estar ansiosos por que eu volte para junto deles são e salvo. Tenho eu o direito de prolongar ainda mais o sofrimento deles? O meu pai, então, tem uma saúde muito frágil, pode morrer a qualquer momento. Não suporto a ideia de nunca mais poder voltar a abraçá-lo, nem que seja só numa despedida final! E a minha querida mãe, por que sofrimentos é que ela estará neste momento a passar por minha causa? Eu próprio morro de vontade por poder voltar a beijá-la e a abraçá-la, o mais cedo que for possível!
«Foi por isso que não desertei. Trouxe o Didi prisioneiro para o quartel, onde o capitão lhe fez um segundo interrogatório e o mandou entregar à DGS.»
O alferes fez uma pausa prolongada e exclamou a seguir:
«Tive na minha frente um herói! E eu permiti que ele fosse entregue à DGS... Sinto-me o mais desprezível dos vermes.
Fez outra pausa e murmurou:
«A esta hora já deve estar morto.»
A VIDA NAS MATAS DE ZEMBA
No início da guerra, em 1961 e 1962, a população de uma vasta área do noroeste de Angola abandonou as localidades onde residia e refugiou-se nas matas, para fugir à medonha repressão feita pelas Forças Armadas Portuguesas, em resposta aos hediondos massacres realizados pela UPA em 15 de Março, numa espiral de violência louca e cega. A população fugiu para o interior das densíssimas florestas que cobrem vastas áreas da região, onde passou a dar o seu apoio aos movimentos independentistas angolanos, isto é, à UPA (que deu lugar à FNLA) ou ao MPLA, consoante as zonas em que tinha buscado refúgio.
No caso concreto das zonas controladas pela UPA/FNLA, que foram as que conheci melhor, a população estabeleceu-se no interior das matas em acampamentos constituídos por palhotas e aí procurou, tanto quanto possível, reconstituir as suas comunidades. A população de cada localidade estabeleceu-se num acampamento próprio, reatando aí os seus laços de vizinhança e de convivência, e deu ao acampamento o nome da povoação de origem, porque a comunidade era a mesma, apesar de passar a viver num lugar físico diferente.
É assim que, a par de Zemba propriamente dito, havia o Zemba "Turra", que era o acampamento onde viviam as pessoas fugidas de Zemba e que ficava numa região realmente chamada Zambache; na região do Catoca situava-se um acampamento chamado Mucondo, onde viviam as pessoas oriundas de uma sanzala que antes da guerra existia no Mucondo e que agora existe de novo; na região de Quindembe havia um acampamento chamado Calunga Samba, no qual viviam as pessoas fugidas do Calunga Samba propriamente dito, situado na picada entre Zemba e Santa Eulália; etc., etc.
Estes acampamentos eram constituídos por palhotas bastante precárias e mais pequenas do que as cubatas normais. Não se justificavam cubatas melhores do que aquelas construções rudimentares, porque elas eram temporárias. As pessoas viam-se constrangidas a mudar de lugar de tempos a tempos, para não serem localizadas pela tropa portuguesa e eventualmente atacadas. Por isso é que os aglomerados de palhotas em que viviam eram chamdos acampamentos e não sanzalas.
Curiosamente ou talvez não, apesar de também terem de mudar de local com frequência, as bases guerrilheiras da FNLA (ou melhor, do seu braço armado, o ELNA, Exército de Libertação Nacional de Angola) tinham um aspeto consideravelmente melhor do que os acampamentos da população civil. Apesar de também ficarem no interior das matas, as bases da guerrilha eram espaços surpreendentemente airosos, tinham cubatas bem construídas, eram muito limpas e arranjadas e até possuíam canteiros, embora estes tivessem poucas flores porque, estando debaixo das copas das árvores, nunca apanhavam sol. A central de Quindembe, nomeadamente, foi o melhor exemplo de quartel do ELNA que encontrei.
Os primeiros tempos de vida da população nas matas, em 1961 e 1962, devem ter sido de muita fome, dado que as pessoas se viram obrigadas a abandonar as suas lavras e fugir. Tiveram que arrotear outras lavras, conquistando terreno à floresta virgem. Até que as novas lavras começassem a produzir, as dificuldades devem ter sido terríveis.
As suas lavras eram por vezes objeto de destruição por parte das Forças Armadas Portuguesas, que assim tentavam obrigar o povo, acicatado pela fome, a entregar-se às autoridades coloniais. O lançamento de desfolhantes químicos por aviões da Força Aérea, com a finalidade de destruir lavras, não era frequente, mas também aconteceu.
Passei uma vez por uma lavra destruída por desfolhantes, no decurso de uma operação que fiz na
Zona de Ação de Cambamba. Foi um espetáculo mesmo muito feio de se ver. Era como se um qualquer cataclismo à escala cósmica tivesse feito desaparecer a cor verde do Universo. Para onde quer que se olhasse, não se via absolutamente nada que tivesse a cor verde. Nem a mais pequena erva, nem o mais insignificante musgo, nada. O emaranhado dos ramos nus das mandioqueiras lembrava que aquela terra, propositadamente tornada estéril, já alimentara vidas humanas. Os ramos mortos das árvores erguiam-se para o alto, como se clamassem contra a maldição que lhes tinha caído do céu.
A forma de destruição de lavras que era, de longe, mais frequentemente usada pela tropa portuguesa consistia no emprego de grupos de trabalhadores forçados (geralmente chamados bailundos, por na sua maioria serem da região do Bailundo, no Planalto Central de Angola) que, munidos de catanas, cortavam as culturas, enquanto tropas do Exército montavam guarda. Esta era uma ação que nos repugnava, como já escrevi a propósito do Natal de 1972. Considero-a um crime de guerra, contrário a toda e qualquer ética militar.
Nas suas deslocações entre um acampamento e uma lavra ou entre um acampamento e outro, era possível que algum civil encontrasse no caminho, de repente, militares das Forças Armadas Portuguesas em operações. O desfecho deste inesperado encontro variava muito, consoante o comportamento que a tropa tivesse. Havia militares que deixavam que a pessoa escapasse sem reagirem, assim que tivessem verificado que ela não estava armada. Outros militares procuravam mesmo assim capturá-la e levá-la para o quartel, para que lhes fornecesse informações. Outros ainda, desprovidos de escrúpulos, disparavam a matar sobre ela e somavam mais um "terrorista" abatido à sua lista de baixas causadas ao "inimigo".
O primeiro comportamento descrito no parágrafo anterior foi aquele que foi seguido pelos militares da minha companhia. Por várias vezes fui chamado por soldados meus que me disseram: «Meu alferes, meu alferes! Passou por ali um gajo a correr!» «E então? Não fizeste nada?» «Não estava armado, deixei-o ir». É claro que a partir daquele momento tínhamos que tomar muito mais cuidado, pois a pessoa avistada poderia ir avisar os guerrilheiros sobre a nossa presença naquele local. Procurávamos, em concreto, mudar o rumo da nossa progressão, para que não pudéssemos cair em alguma emboscada que nos viesse a ser montada mais à frente.
Não era só durante as suas deslocações pelos caminhos do mato que os civis corriam risco de vida. Os próprios acampamentos podiam ser atacados por forças terrestres ou podiam ser bombardeados pela artilharia ou pela aviação portuguesa. Os bombardeamentos aéreos, por estranho que possa parecer, não eram muito temidos pela população. Primeiro, porque nas proximidades dos acampamentos existiam abrigos, naturais (grutas e furnas, como havia no Zemba "Turra") ou feitos pela mão do homem. Segundo, porque os acampamentos estavam situados no interior de matas, abrigados debaixo de árvores altíssimas, muitas delas com dezenas e dezenas de metros de altura, em cuja copa as bombas rebentavam, em vez de virem rebentar junto ao chão, onde poderiam fazer muito mais estragos e vítimas. Terceiro, porque os bombardeamentos costumavam realizar-se sempre nos mesmos dias do mês, com a regularidade de um relógio. Quando se aproximava o dia em que os aviões da Força Aérea viriam lançar as suas bombas, as pessoas punham-se a salvo, regressando quando os aviões se fossem embora. Todos os meses, julgo que por volta do dia 15 de cada mês, nós em Zemba assistíamos ao espetáculo proporcionado pelos aviões F-84 lançando bombas sobre a região do Mil e Vinte.
Os pilotos da Força Aérea Portuguesa lançavam as bombas um pouco às cegas, isto é, lançavam-nas sobre uma determinada mata, sem saberem ao certo o que é que havia por baixo daquela massa compacta de árvores que tinham diante dos seus olhos. Podia haver uma base da guerrilha, podia haver um acampamento civil, como podia haver apenas selva.
As tropas terrestres em operações também podiam enganar-se e fazer um golpe de mão a um acampamento civil, em vez de o fazerem a uma base guerrilheira. As bases e os acampamentos estavam habitualmente próximos uns dos outros, mudavam de lugar de tempos a tempos e, por isso, os militares podiam enganar-se quanto à natureza do alvo que atacavam. Podiam, nomeadamente, não conseguir interpretar corretamente as marcas e os indícios que encontravam ao longo da sua progressão e acabar por atacar um acampamento civil, pensando que o faziam a um quartel da guerrilha. Em todas as guerras há erros trágicos e a guerra colonial não foi exceção, infelizmente.
Também se pode afirmar que em todas as guerras há crimes contra a humanidade e que a guerra colonial também não foi exceção. Desgraçadamente não foi. Quando um acampamento civil era propositadamente atacado por grupos de combate das Forças Armadas, pelos Flechas (força paramilitar da PIDE/DGS, constituída, sobretudo, por antigos guerrilheiros), pela OPVDCA (Organização Provincial de Voluntários para a Defesa Civil de Angola, os chamados "voluntários", de que havia um quartel no Quicunzo, entre Santa Eulália e o Mucondo), pelos TE (Tropas Especiais, constituídas sobretudo por ex-guerrilheiros da UPA/FNLA) ou por outra força mais ou menos irregular que eventualmente atuasse pelo lado colonial, os civis que fossem mortos no ataque eram habitualmente contabilizados como guerrilheiros abatidos. Nenhuma destas forças, de resto, se atrevia a reconhecer que tinha atacado um acampamento civil. O que constava nos seus relatórios de operações era que o ataque tinha sido feito a uma base do inimigo, isto é, da guerrilha.
Ora atacar uma verdadeira base da guerrilha implicava correr sérios riscos, porque os guerrilheiros estavam armados, sabiam defender-se e os seus quartéis tinham uma estrutura de defesa montada para a eventualidade de um ataque. Era muito menos perigoso lançar um ataque a um acampamento civil, onde no máximo só havia meia-dúzia de guerrilheiros a guardar a população, como acontecia nas áreas controladas pela FNLA, ou onde só havia uma pequena milícia de autodefesa mal municiada, como era sobretudo o caso nas áreas do MPLA. Assim, houve forças militares e paramilitares que cometeram a cobardia de atacarem deliberadamente acampamentos civis, em lugar de o fazerem a bases guerrilheiras. Destes ataques resultaram, por vezes, verdadeiros massacres entre a população. Um ataque deste género foi lançado, nomeadamente, por uma força de Flechas contra um acampamento na região do Catoca, em janeiro de 1973, do qual resultaram mais de 100 mortos. No fim, os Flechas ainda tiveram o desplante de dizer que tinham destruído a própria base do Catoca e que os mortos eram "terroristas"! É muito importante que se diga, porém, que a grande maioria das unidades das Forças Armadas Portuguesas nunca agiu deste modo. Nunca. Foi este o caso do nosso glorioso batalhão.
Ainda que a produção das lavras cultivadas no meio das matas eventualmente chegasse para alimentar a população, outros tipos de alimentos, tais como carne, eram manifestamente insuficientes. Embora nas matas houvesse bastante caça, sobretudo javalis e gazelas, a prática da caça era relativamente limitada, por causa da guerra e dos seus perigos. Quase nunca se usavam armas de fogo para caçar, porque os tiros poderiam chamar a atenção de alguma força militar que pudesse estar nas proximidades. O que se usava eram armadilhas de caça, que eram silenciosas e eficazes. Quantas vezes passámos por armadilhas destas durante as nossas operações.
As matas também não eram espaços apropriados para se fazer criação de animais. Nos acampamentos havia umas quantas galinhas e pouco mais. Resultava daqui que a população tinha uma alimentação muito desequilibrada, com graves deficiências de proteínas. Este sério desequilíbrio alimentar era eloquentemente revelado pelas barrigas dilatadas das crianças.
Além das deficiências alimentares e da sua nefasta influência sobre as defesas naturais do organismo, a maior parte das pessoas que viviam nas matas sofria de parasitoses intestinais. Há em Angola parasitoses muito graves, que podem colocar em sério risco a vida do seu hospedeiro. Este risco aumenta ainda mais quando o hospedeiro tem as suas defesas naturais enfraquecidas, em
resultado de outras doenças ou da subnutrição.
Muitas outras doenças afetavam os civis vivendo nas matas: anemia, paludismo, diarreias, reumatismo, tuberculose, cólera, sarampo e sei lá que mais.
O sarampo, por exemplo, que em Portugal não passava de um mero incómodo, porque só obrigava a criança doente a ficar de cama por uns dias, ao fim dos quais voltava a ficar sã como um pero, era quase inevitavelmente fatal para uma criança cujas defesas naturais já estavam debilitadas. Nas matas do norte de Angola, uma epidemia de sarampo resultava na morte pura e simples de uma geração inteira de crianças. Eram muito poucas as que conseguiam sobreviver a esta doença.
Nas matas não havia médicos. A população recorria à medicina tradicional ou então a algum enfermeiro, se houvesse. Sim, havia enfermeiros do lado da guerrilha, mas pouquíssimos para as necessidades. Como é evidente, numa guerra os enfermeiros são imprescindíveis para acudir aos feridos, que inevitavelmente existem, muitos dos quais com séria gravidade. Mas ao contrário do lado português, em que os feridos, depois de terem recebido os primeiros socorros prestados de imediato por um enfermeiro, acabavam por ser evacuados por helicóptero para um hospital, onde eram tratados em boas condições, no lado da guerrilha os feridos não podiam ser evacuados para onde quer que fosse. Só um enfermeiro no local é que poderia fazer algo por eles e nada mais. No caso de o ferimento ser grave, a morte acabava inevitavelmente por acontecer. Como facilmente se compreende, era um profundíssimo golpe para quem continuava nas matas a deserção de um enfermeiro para o campo português. Foi o que fez o Eusébio, de Zemba, que serviu de guia à nossas tropas em diversas operações e que tinha sido enfermeiro na FNLA. Os guerrilheiros juraram matálo na primeira oportunidade, porque os tinha deixado sem assistência.
A vida nas matas era, como se vê, extremamente dura e precária. A morte rondava em todo o lado e a todo o momento. A guerra era uma realidade que parecia que nunca mais iria acabar. A fome, as doenças, a dor, o luto, enfim, toda a espécie de sofrimento ensombrava permanentemente a vida do povo. Diante de tantos perigos e de tantas ameaças, as pessoas sentiam a urgente necessidade de se agarrar a uma tábua de salvação, que lhes desse alguma esperança, por mais ilusória que fosse. Esta tábua de salvação era a religião.
Nunca me constou que existissem padres ou pastores protestantes na 1ª Região Político-Militar do MPLA. Melhor dizendo: o que me constou foi que não os havia. Mas admito que sim, que houvesse pastores. Como se sabe, o MPLA perfilhava a ideologia marxista e, como tal, não apoiava nenhuma igreja ou religião. Mas o movimento não poderia dar-se ao luxo de ignorar (e muito menos de hostilizar) a religião, sob pena de perder o apoio popular.
Quanto à FNLA, esta sim, apoiava oficialmente uma igreja protestante, mais precisamente uma igreja metodista cuja designação completa era Igreja Católica Apostólica Evangélica Angolana. Esta igreja tinha pastores espalhados pelas zonas controladas pelo movimento, onde prestavam assistência religiosa à população. Como complemento à assistência que prestavam, os pastores vendiam às pessoas livrinhos de cânticos e orações, que estavam escritos no idioma local, quicongo ou quimbundo consoante a região. Como nas matas não havia dinheiro em circulação, os livrinhos eram vendidos em troca de outros bens, como galinhas ou produtos das lavras.
Os livrinhos de cânticos e orações eram muito mal impressos e feitos num papel de péssima qualidade. É evidente que eles teriam que ser assim, para saírem tão baratos quanto possível, a fim de poderem chegar às mãos de pessoas que viviam no mais estrito limiar da sobrevivência. E a verdade é que as pessoas não se poupavam a sacrifícios para adquirirem um livro desses. Por muito fraca que fosse a impressão e por muito ordinário que fosse o papel, as gentes que viviam nas matas tinham mais estima pelos seus livrinhos do que se eles fossem impressos em letras de ouro sobre
folhas do mais fino pergaminho. Por nada deste mundo as pessoas aceitavam desembaraçar-se deles. Preferiam morrer de fome. Os livrinhos de cânticos e orações eram, de muito longe, os bens mais preciosos que aquele povo tinha.
Tal como nas áreas controladas pelo MPLA, também nas áreas sob o controle da FNLA havia escolas e professores. Mas ao contrário do MPLA, que publicava uma cartilha para ser usada nas escolas, a FNLA não publicava nada. Assim, para poderem aprender a ler e escrever, os alunos das escolas da FNLA viam-se obrigados a usar o tal livrinho de cânticos e orações, porque não havia mais nenhum. Era com base no livrinho que eles aprendiam. Faziam-no, portanto, na sua língua materna: quicongo se fossem bacongos ou quimbundo se fossem ambundos.
E quanto à língua portuguesa, como era? Quase todas as pessoas que viviam nas matas falavam um português por vezes muito rudimentar. Mas tinham uma forte vontade de conhecer melhor a língua, quanto mais não fosse para poderem entender o que era dito nas emissões de rádio da FNLA e para poderem ler o que estava escrito nos panfletos, quase sempre impressos em português, que eram lançados pelos aviões da Força Aérea sobre as matas.
Os panfletos que a Força Aérea lançava eram, com efeito, apanhados com avidez pela população civil, não obstante as ameaças feitas pelos comandantes da FNLA de que castigariam quem quer que fosse encontrado na posse de um deles. O teor dos panfletos realçava as dificuldades que o povo sentia nas matas, «vivendo como bichos», e incitava-o a apresentar-se às autoridades civis ou militares, pois nos aldeamentos sob controle colonial não lhe iria faltar comida, tratamento médico, roupa, água, escolas, etc. Nos panfletos, os guerrilheiros eram habitualmente chamados bandidos e os seus líderes descritos como corruptos e insensíveis ao sofrimento do povo. «Enquanto Holden Roberto vive como um rei no estrangeiro, o povo morre de fome na mata», diziam alguns panfletos.
O efeito que os panfletos tinham sobre as populações era pouco menos do que nulo. Fosse porque as pessoas tinham medo de ser mortas pelos brancos, fosse porque estavam convencidas de que a razão estava do lado dos guerrilheiros, fosse por outro motivo qualquer, a verdade é que eram muito poucas as pessoas que saíam da mata e se apresentavam às autoridades portuguesas só por terem lido os panfletos.
Uma coisa, pelo menos, era certa: os panfletos eram mesmo lidos e compreendidos pela população. As pessoas procuravam ansiosamente apanhá-los e não descansavam enquanto não conseguissem decifrar o seu conteúdo. A avidez com que o faziam devia-se em boa parte ao desejo que sentiam de praticar a leitura de textos em língua portuguesa. Esta afirmação talvez possa parecer um tanto estranha, relativamente a gentes que viviam no sertão africano, mas a verdade é que as populações do norte de Angola (e não só) sentiam uma grande vontade de aprender coisas novas e de conhecer melhor o mundo. Esta curiosidade intelectual era um facto, ela existia mesmo. A leitura, a escrita e o domínio da língua portuguesa contavam-se entre as habilitações que as pessoas procuravam aperfeiçoar. Ora os panfletos lançados dos aviões permitiam-lhes praticar a leitura e o português ao mesmo tempo. Por isso os procuravam apanhar e ler, para exasperação dos comandantes da guerrilha.
A FNLA tinha um programa diário de rádio, chamado Voz de Angola Livre, o qual era transmitido a partir de Kinshasa e irradiado pelos emissores de ondas médias e curtas da estação oficial da República do Zaire, atual República Democrática do Congo. Este programa era emitido a partir das 19 horas e tinha a duração de trinta minutos, tal e qual como acontecia com o programa do MPLA, chamado Voz de Angola Combatente, que era transmitido a partir de Brazzaville através dos emissores da rádio oficial da República Popular do Congo, atual República do Congo.
Em cada acampamento controlado pela FNLA, em princípio, existia um receptor de rádio a pilhas, o
qual só era ligado para captar as emissões do movimento. Todos os habitantes do acampamento eram obrigados a ouvir estas emissões, reunidos em volta do aparelho. As emissões eram faladas em português e também em quicongo e quimbundo. Além de proclamarem os êxitos militares do movimento, reais ou supostos, as emissões incluíam bastantes mensagens em código dirigidas ao interior do território. No que à política diz respeito, eram frequentemente enaltecidas as virtudes da economia de mercado e da propriedade privada. Era através destas emissões que a FNLA (que ao contrário do MPLA não tinha comissários políticos) fazia a doutrinação da população que lhe era afeta.
Um outro aspeto da vida nas matas que aqui ainda poderia ser abordado seria a administração da justiça. No entanto, não sei até que ponto é que a justiça competia às autoridades tradicionais e até que ponto é que ela era administrada pelos comandantes da FNLA. O que sei é que, no que aos comandantes do movimento dizia respeito, a forma de aplicação da justiça variava muito de um comandante para outro. Enquanto havia comandantes que eram temidos e até odiados, porque eram extremamente severos, ordenando a aplicação de castigos físicos violentos pelas razões mais insignificantes (como era o caso do comandante da central de Quindembe, a quem o povo chamava "O Homem das Barbas") outros comandantes eram muito mais comedidos nas sentenças que ditavam. No caso destes últimos, uma condenação que era considerada bastante grave consistia em ordenar que o réu ficasse amarrado a uma árvore durante uma semana. Como nas matas não havia prisões, a única forma de prender uma pessoa era amarrá-la a uma árvore.
Enfim, a vida da população de uma região em guerra, qualquer que ela seja, é uma vida extremamente dura e sofrida. Tentar sobreviver no meio dos tiros e das bombas, da fome e das doenças, do ódio e do desprezo pela vida humana, exige um força de vontade sobre-humana. O povo de Angola sofreu demasiado na sua carne e no seu espírito o efeito de várias décadas de guerra. Merece agora, mais do que qualquer outro povo do mundo, a paz e a liberdade
quarta-feira, 29 de março de 2017
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário